Eu sou da classe matuta, da classe que não desfruta das riquezas do Brasil
Em todo o mundo, a vida social anda em perigo. Não tem sido fácil acompanhar as notícias, tão graves e sérias, sobre a situação de vários povos do mundo, vitimados pela pandemia do Covid19.
Diante da situação alarmante que o país atravessa – com mínimas condições (será nenhuma ?) de atender sua população – sobretudo os mais velhos e mais carentes -, choca assistir, cotidianamente, aos disparates, impropérios, inconsequências e bravatas do titular da República. São tantas e tão colossais que, mesmo grande parte dos que nele votaram (não sem aviso de jornalistas e cientistas do mundo inteiro de que o caos era o ponto mais rápido a se chegar), hoje estão bradando contra o insano “mito” e protestando diariamente nas janelas, nos quatro cantos do país.
A arrogância e prepotência do ex-candidato 17 passou de qualquer limite aceitável, embora uma parcela renitente prossiga defendendo a peste, agarrando-se a qualquer fio de razão (?), ainda que essa venha a bordo de um calhamaço de fakenews.
Estamos todos, os que podemos (há diversos trabalhadores que precisam continuar na rua atuando em prol da coletividade), cumprindo regime de quarentena em nossos lares. Nesta hora, a arte, a ciência, a literatura, a música, o audiovisual, todos que foram tão duramente golpeados pela ideologia fascista que aportou no centro do poder, em Brasília, tem uma utilidade que agora se agiganta. Os que tanto atacaram, vilipendiaram e levantaram calúnias, de todos os matizes, sobre as universidades (sobretudo as públicas), agora precisam admitir o quanto é importante e necessário que elas funcionem bem para que a vida em sociedade tenha alguma condição de sobrevivência saudável. Mas esses, otários e arrogantes diplomados, continuam se negando a admitir que erraram fartamente ao defender o indefensável, o contrassenso, o caos, e a excrescência que o voto no #elesim significa, condenando uma imensa maioria ao massacre atual da ignorância e da irresponsabilidade que afunda o país num manancial de ações nocivas contra sua grande massa trabalhadora – de artistas a profissionais dos serviços básicos coletivos.
A degradação a que o energúmeno-mór chegou é tamanha que até alguns que já lhe foram próximos, agora se espantam e tomam caminhos opostos, ainda bem. Aliás, alguns já declararam o erro de seus votos há algum tempo, felizmente.
Patativa do Assaré: símbolo cearense da bravura indormida do sertanejo
Tudo isso me veio a propósito de encontrar uns versos do poeta popular cearense Patativa do Assaré (a quem tive a felicidade de conhecer quando ainda cursava a faculdade de Comunicação e apresentava teleaulas diárias na TV Educativa do Ceará) numa rede social. Os versos são da poesia “Seu dotô me conhece ?”, os quais foram ditos por um quase desconhecido poeta popular do cariri cearense no principal palco da capital cearense, o histórico Theatro José de Alencar, no centro da cidade, durante o evento Massafeira Livre.
Artistas de várias áreas estavam juntos nos quatro dias do festival, realizado em março de 1979, embora com censura por parte do governo e quase invisível para a imprensa à época. A entrada de Patativa no palco, aquele sertanejo muito simples, baixinho, vestido sem nenhum figurino especial de artista, tendo ele mais idade do que todos os que lá estavam para tocar e cantar, foi um marco, como conta o colega Nelson Augusto (jornalista/radialista e produtor do programa Frequência Beatles, da Rádio FM Universitária de Fortaleza) em tese do professor e compositor Wagner Castro (2014).
Com sua voz inconfundível e seu jeitinho marcante, Patativa foi quem inseriu, de modo incisivo, a política no meio da cantoria daqueles artistas – irmanados, em movimento encabeçado pelo compositor Ednardo e o letrista/publicitário Augusto Pontes, para mostrar sua produção artística.
Pois foi ali que Patativa chegou com sua verve admirável e recitou os versos, que mais adiante foram musicados pelo querido Mário Mesquita (cantor/compositor/letrista/arranjador), um dos criadores do lendário conjunto musical Quinteto Agreste, de grande atuação na cena musical cearense na década de 1980.
O templo de Alencar testemunhou então uma imensa plateia ouvindo em atenção respeitosa o poeta dizer:
“Seu doutor só me parece
Que o senhor não me conhece
Nunca soube quem sou eu
Nunca viu minha palhoça
Minha muié (mulher), minha roça e os fio (filho) que Deus me deu
Se não sabe escute agora
Eu vou contar minha histora (história)
Tenha a bondade de ouvir
Eu sou da classe matuta
Da classe que não desfruta da riqueza do Brasil”
E eu fiquei daqui a pensar que falta faz Patativa nesta fase tão difícil, tensa e triste da vida brasileira. Assim como fazem falta Vinícius, Ferreira Gullar, Dias Gomes, Drummond, Belchior, Luiz Melodia, Fernando Brant, e tantos outros.
Reler Patativa hoje me projetou vivamente para a imensa massa de carentes, trabalhadores em condições precárias, moradores de rua e necessitados de toda ordem, habitantes de inúmeras comunidades desassistidas que reafirmam cotidianamente o projeto de Brasil que exclui a partir da educação, como tão bem evidenciou Darcy Ribeiro.
A “crasse matuta” da “histora” de Patativa é a mesma imensa crasse das favelas do Brasil, mergulhada num deserto permanente de descaso e iniquidade, tal qual o pobre matuto do sertão que Patativa cantava. Nascido, criado e vivido ali, no seu pequenino e esquecido Assaré, o poeta sabia exatamente das dores, agruras, sofrimentos e descasos de que eram vítimas seus conterrâneos.
A poética de Patativa tem uma impressionante atualidade. Basta conhecer para engatar a analogia: seus versos ecoam como se saídos da união das vozes dos milhões que formam essa “crasse”, desassistida e vitimada desde sempre pela exclusão, o descaso criminoso, o preconceito e os resquícios da malfadada escravidão que fertiliza, ainda hoje, o território nacional.
“Sou aquele que conhece
A privação que padece
O mais pobre camponês
Tenho passado na vida
De quatro mês em seguida sem comer carne uma vez
Sou que durante a semana
Cumprido a sina tirana na grande labutação
Mode de sustentar a famía (família)
Só tem direito a dois dia
O resto é para o patrão
Sou sertanejo que cansa de votar com esperança
Do Brasil ficar mior (melhor)
Mas, o Brasil continua na cantiga da perua
Que é: pior, pior, pior”
Sua bênção, Patativa !
Favelados, sertanejos e nordestinos de todo o país,
Estamos na mesma canoa:
“O Brasil continua na cantiga da perua,
Que é pior, pior, pior !”