Arquivo da tag: jornalista Aurora Miranda Leão comenta morte de Domingos Montagner e personagem de Santo – acesse o #blogauroradecinema

Domingos Montagner: vida real invade a ficção e eterniza VELHO CHICO

        * Por Aurora Miranda Leão

dom-11

É ainda sob forte impacto e completamente mergulhada em tristeza e dor que escrevemos este post. Escrevemos sobretudo por causa de você, leitor amigo, e para que nossa solidariedade possa chegar ao coração de form mais contundente a toda a prodigiosa equipe que realiza, sob a batuta do maestro Luiz Fernando Carvalho, esta obra prima colossal que é VELHO CHICO.

Você que nos acompanha bem sabe de nossa imensa admiração pela telenovela, de nosso apreço pelas obras do autor Benedito Ruy Barbosa, e de nosso imenso carinho pelos trabalhadores, famosos e anônimos, que tornam possível a realização de uma obra de proporções tão gigantes como uma telenovela, sobretudo as do horário nobre – as mais difíceis, as mais vistas e também as mais atacadas pela crítica – ainda tão preconceituosa e assaz conservadora, mesmo em pleno terceiro milênio.

A notícia do trágico fim do ator Domingos Montagner, protagonista de Velho Chico,  deu-nos uma quinta-feira de perplexidade absoluta. Diante do imponderável,  o real invadiu nosso cotidiano de forma brutal e fomos jogados na vala fria e dolorosa de um desaparecimento  fatal, nefasto, inconcebível, inaceitável.

Enredados numa abjeta narrativa, infelizmente encharcada de realidade, dramaticamente infeliz, e dessa vez não engendrada por nenhum Coronel Saruê, a notícia do afogamento começou a chegar à redes sociais pouco depois das 14h. Passava um pouco das 16h quando li no site da Globo as primeiras informações. Mesmo sabendo dos riscos que é mergulhar e não voltar à superfície, acreditava em “Santo” em alguma paragem do São Francisco, salvo por algum ribeirinho. Confesso não ter pensado nunca no pior final.

Resultado de imagem para domingos montagner em cenas de velho chico

Mas ele veio, infelizmente. Foi a pior de todas as notícias do dia, aquela que você nunca quer ler, a consciência reluta em aceitar, o coração não quer acreditar, e que um jornalista jamais quer divulgar. Infelizmente, o pior do pior aconteceu, e foi na sempre eficiente Globo News que o desaparecimento funesto de Domingos Montagner foi confirmado, pouco depois das 18h.

Quem acompanha este #auroradecinema também no Instagram, Flickr, Twitter ou Facebook, sabe que, nessas redes, acompanhamos o desenrolar dessa tragédia inconcebível. E o que a torna ainda mais grave: a fatalidade era EVITÁVEL !

Segundo matéria do Jornal Nacional na noite desse sábado, 17 de setembro, a chamada “Prainha” onde Domingos mergulhou e foi colhido pela brava correnteza, era um lugar muito perigoso, proibitivo, e até pouco tempo, havia ali bóias sinalizadoras de que o local era proibido ao banho. Sabe-se lá porquê as bóias foram retiradas do lugar, e como aparenta ser muito tranquilo, por isso convidativo ao mergulho, o ator foi ali celebrar suas gravações finais do personagem “Santo dos Anjos” às margens do São Francisco.

Tivera a prefeitura e os órgãos competentes tido o necessário cuidado em manter os avisos de que aquela área era perigosa e não oferecia segurança ao banho, e nosso Domingos Montagner não teria sido vitimado. Quantos como ele não devem ter perdido a vida ali também, naufragados no descaso com a vida humana, na negligência com o respeito aos princípios básicos da civilidade ? Será preciso que um ator famoso perca a vida de forma tão brutal para que, finalmente, possamos pensar em cobrar das autoridades competentes (?) o devido cuidado com o que devia ser sua tarefa cotidiana  ?

dom-1

É URGENTE que o Ministério Público seja convocado a interpelar esse descaso, negligência, desleixo e execrável desrespeito à vida humana para que os responsáveis sejam devidamente punidos e acidentes iguais não venham mais a ocorrer !

d-ri

Que Domingos Montagner, nosso eterno Santo dos Anjos, possa agora correr livre nos vastos campos do céu, abençoado por Deus e guiado pelos mais belos anjos do Senhor !

Velho Chico está em suas semanas finais. A novela, obra-prima de Benedito Ruy Barbosa e Luiz Fernando Carvalho (os dois aqui representando a enorme equipe que torna possível a realização primorosa de VELHO CHICO) teve um desfalque no elenco em seus capítulos iniciais, quando o ator Umberto Magnani, que fazia o Padre Romão, sofreu um AVC e não mais se recuperou. Agora, em seus capítulos finais, Velho Chico perde – de forma dolorosa ao extremo -, o talento, o carisma, a força e a grandeza do talento de DOMINGOS MONTAGNER.

vaq

Se nada disso tivesse acontecido, Velho Chico continuaria sendo a obra-prima magistral que É ! Luiz Fernando Carvalho (LFC) reuniu a NATA DA NATA e esmerou-se na ousadia: partiu da Antropofagia Tropicalista e mergulhou em diversas inspirações artísticas definindo uma estética multifária, cheia de dissonâncias e belas sincronicidades. Mesclou a inteligência de suas muitas inspirações poéticas e casou suas percepções imagéticas e sensórias com a inventividade criativa do artista plástico Raimundo Rodriguez. Assim nasceu o Barrococó Neoclássico que encheu nossa telinha de vigor artístico e infinita beleza. A condução fotográfica de Alexandre Fructuoso (que assumiu seu lado fotógrafo graças ao impulso recebido de LFC) nos proporcionou, todas as noites, um mergulho num universo que estourava em beleza e convidava a uma sucessão de referências cognitivas e ressignificações para um cotidiano tão banal (?) como o da vida numa pequena cidade do interior nordestino.

Não tenho dúvida alguma de que o final de VELHO CHICO vai ser apoteótico, não no sentido de espetacularização, mas seguindo pelo viés que sempre conduziu a novela, entre o drama e a tragédia, com cores tantas vezes sombrias a esconder mistérios da família Saruê, e as influências de várias culturas que ali foram mostradas com igual respeito e a devida deferência.

Resultado de imagem para domingos montagner em cenas de velho chico

O final de VELHO CHICO vai coroar uma obra que foi majestosa do principio ao fim e que é um marco relevante e sui generis da Teledramaturgia Brasileira. 

Orgulho-me de ter visto e acompanhado a obra com a maior das atenções.

E acredito: quando um personagem com o nome de SANTO – com toda a fortaleza que o personagem de Domingos simbolizava para a trama – morre na vida real, e não na ficção, isso vai agregar um valor ainda maior à obra, da qual ela não carecia em sentido algum, mas que surge e se impõe com a força avassaladora de uma tragédia shakespereana, autor que Luiz Fernando tão grandiosamente homenageou com sua singular direção.

Resultado de imagem para domingos montagner em cenas de velho chico

Nos  400 anos da morte do dramaturgo considerado o Pai da Dramaturgia Mundial, Shakespeare, que foi colocado no centro da trama de VELHO CHICO através do personagem do coronel Saruê ( vivido com brilhantismo pelo magnânimo Antônio Fagundes, misto de Hamlet e Rei Lear), e o amor cheio de obstáculos de Teresa e Santo (Romeu & Julieta), o desaparecimento mórbido de Domingos Montagner (que partiu no auge da carreira e em plena felicidade com o papel de Santo) transforma-se numa narrativa de arrepiante interferência do real nas trilhas da ficção. Obviamente, sem propósito nem intenção, Shakespeare é agora o autor que assoma numa tragédia nordestinamente brasileira, ancorada às margens do São Francisco, rio fundador de nossa brasilidade (como afirmava o escritor Machado de Assis). Pois é completamente inimaginável deparar-nos com a morte de um personagem principal em pleno período de gravações. Nem a ficção ousou imaginar semelhante despautério.

dom-e-leone

Desde a infância, o aprendizado nos confidenciou um mistério que nos aliviava diante da ficção, fosse qual fosse: aprendemos (e como era reconfortante saber disso) que “personagem principal não morre”. E agora choramos a partida daquele que chamaremos eternamente de SANTO. Partida, morte ? Mas Santo é personagem principal, e principal não morre. SANTO é Anjo, no céu ou na terra. Como pode ? Sumiu no mundo sem nos avisar…

O SANTO de Domingos era a Fortaleza da família dos Anjos, o Pai amoroso e dedicado, o filho honrado, o homem do povo – honesto, justo, trabalhador – amado e admirado por seus pares. O SANTO que Benedito e Bruno Luperi entregaram a Domingos Montagner era pra ser um herói quase mitológico, com a força imbatível dos justos, a grandeza dos puros de alma, o fascínio indormido dos grandes heróis, a bravura indomável do rio São Francisco.

Sem o saber nem jamais imaginarem, Benedito Ruy Barbosa, Edmara Barbosa e Bruno Luperi legaram a Domingos Montagner um epíteto sacrossanto que só pode ter sido bendita e espiritualizada inspiração shakespeareana – e que emocionante que assim tenha sido.

d-e-c

Domingos SANTO Montagner dos ANJOS é uma espécie de herói mítico que une frações de personagens de Shakespeare, de Brecht, de Ibsen e de tantos clássicos da Dramaturgia Universal. Na versão tropicalista de Velho Chico, podemos dizer que SANTO seria (livremente inspirado em Péricles, o Príncipe de Tiro) nosso Príncipe Popular de Grotas.

Afinal, “Há mais coisas entre o céu e a terra do que possa sonhar nossa vã filosofia”.