Grande Sertão: ousadia fílmica de Guel Arraes tem atuações memoráveis e deixa subliminar a ascendência de Conselheiro nas prédicas de Riobaldo

Aurora Miranda Leão*

       Está no imenso do livro: “O sertão é sem lugar”, como nas palavras ditas com maestria por Caio Blat: “O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo”.

       Assim é o “Grande Sertão” nas telas do cinema de todo o país: eloquente, magnetizador, potente, cruel e belo, sombrio, violento, repleto de sangue, balas, rivalidades. Assombroso e impactante. O corajoso filme de Guel Arraes, que divide o roteiro com o cineasta gaúcho Jorge Furtado, transpõe para a telona, com inegável qualidade, o clássico do escritor mineiro Guimarães Rosa (1908-1967). O universo sinistro dos jagunços transforma-se em território urbano da periferia de uma grande cidade, terreno comandado por organizações criminosas em temporalidade indeterminada. Não sem propósito, o cronotopo da diegese chama Complexo do Sertão. A semelhança não é mera coincidência.

        Publicado em 1956, a matriz inspiradora, “Grande Sertão: Veredas”, é obra das mais relevantes da literatura brasileira, por isso é tão importante conhecer a leitura de Guel Arraes que está no cinema e deve ser vista por todo (a) brasileiro (a). O início do longa é um arroubo: por baixo de uma nuvem de poeira branca, vislumbra-se um chão rachado, similar às imagens de sertão guardado tão fortemente no imaginário coletivo. A câmara avança num movimento ágil, descortinando imagens insólitas para quem supõe estar embrenhando-se nalgum rincão com natureza, ainda que castigada, mas o que se vê espelha o frio que assoma num lugar de onde o amor foi exilado.

       O travelling corre e adensa o panorama invulgar até mostrar enormes fragmentos de construções de aço, semelhando maquetes de espaços ermos, abandonados, glaciais, desprovidos de vida. Um cenário imponente, criado por tecnologia digital. Na sequência, aparece uma garota, belos olhos verdes e corajosa atitude perante ambiente tão hostil. Determinada, aguerrida, bonita, destemida, ela vai subindo uma parede enorme e, de repente, seu olhar encontra o de um garoto, também belo, visivelmente impressionado com sua destreza. Ela o encoraja a subir junto, ele reluta mas vai, mesmo com medo, e assim começa a saga que iremos conhecer através desses dois, Diadorim e Riobaldo.  

 Os atores Gustavo Falcão e Luís Miranda integram o núcleo policial…

Um indício delicado e significativo do que virá no decorrer da diegese: adentra-se um quase deserto urbano, no qual há guerra de bandidos e policiais, criminosos envoltos com drogas, tiroteio no complexo de favelas com morte de inocente (adivinha a cor da vítima), crítica ao fascismo e suas nefastas consequências, mãe desesperada, sangue e muita violência num futuro que não parece tão distópico como gostaríamos. As analogias com a realidade brasileira são facilmente identificáveis (afirmando o corajoso viés sociopolítico da película) e perpassam todo o roteiro, robustecido pela prosódia e a poética de Rosa, e enriquecido pelas pujantes atuações.

        Riobaldo cresce, torna-se professor de escola pública e, a certa altura, em meio a um fogo cruzado, ele reencontra Diadorim (Vittória Seixas/Luísa Arraes): o amigo de infância integra um dos grupos a brigar pelo poder no domínio do Complexo. Encantado por Diadorim (que esconde sua verdadeira identidade), e sem coragem de confessar seus sentimentos, o jovem decide abandonar a vida de professor para combater a polícia corrupta.

 Luisa Arraes e Caio Blat protagonizam versão fílmica contemporânea de “Grande Sertão, Veredas”

E num viver de experiências compartilhadas, a dupla de amigos enfrenta um cotidiano desumano, permeado por abjeta guerra (como o são todas elas), numa profusão de dias sangrentos, nos quais acabam por deparar-se com o demo, o mal, o traiçoeiro Hermógenes (Eduardo Sterblitch), matador inveterado, que mata como quem caça brigadeiro em festa de criança, e o resto não vou contar para não tirar a graça da história. Tem que ir ao cinema e conferir o excurso do filme, ou seja, o modo como o discurso é traduzido em imagens.

      Produzido pela Paranoïd Filmes, em coprodução com a Globo Filmes e distribuição da Paris Filmes, o longa-metragem ganhou o troféu de Melhor Direção, ano passado, no Critic’s Pick no Tallinn Black Nights Film Festival (PÖFF), na Estônia. Prova da qualidade do filme e da relevância de colocar a guerra no centro da reflexão sobre a brutalidade que campeia, lépida e incansável, em tantos espaços distintos, mundo afora, amplificando o arco de malefícios dos “Barões da Truculência”, sangrando o coração de tantos pais e mães, ceifando vidas de crianças, idosos, mulheres, alcançando inocentes, inoculando o medo, prospectando toda sorte de horrores e espalhando pelo mundo prejuízos inaceitáveis que se arrastam por séculos.

Só querem que a valentia tenha jeito de macheza“, diz Diadorim no meio de um confronto.

Guel e Furtado assinam o destemor dessa intrepidez de braços dados com a fascinante literatura do escritor nascido em Cordisburgo, com quem aprenderam e no filme sublinham: “O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo.”

 Eduardo Sterblicht explode em vigor e impressiona com caracterização prodigiosa do Mal.

Dentre as sequências mais pujantes do filme sobre a tragédia acontecida no Complexo Grande Sertão, destacamos três: a expressão da dor lancinante que acomete Otacília (Mariana Nunes), dilacerada ao receber a notícia da morte cruel da filha, a jovem estudante Nina, vivida por Maria Eloíza (mais um caso de “bala perdida”, similar ao que acontece com pavorosa frequência em favelas cariocas); o morticínio estúpido e inaceitável de Diadorim; e o momento no qual Riobaldo vai se despedir do parceiro morto, por quem era encantado, e descobre ali, em diálogo emocionante com Nhorinhá (Luellem de Castro magnética), que o amigo era mulher. Numa contraluz providente, ele vai retirando o manto que encobre Diadorim, delicadamente, e surpreende-se ao ver sua genitália. São takes encharcados de poesia visual, capazes de comover até o mais gélido dos renitentes.

         Nessas sequências, avulta a qualidade das interpretações de Mariana Nunes, Luísa Arraes, Luellem de Castro e Caio Blat, emolduradas por um específico fílmico[1] minuciosamente concebido, a ressaltar a eloquência da expressividade de cada intérprete. Iluminação, enquadramento, fotografia, trilha sonora, encenação e maquiagem são avivadas por uma montagem primorosa, favorecendo a construção de admirável arquitetura visual para momentos alegóricos definidores do domínio de Guel Arraes sobre sua obra.

Diadorim, a destemida e aguerrida sertaneja que fascina Riobaldo…

         A execução bárbara de Diadorim é de rasgar o coração, embora de sublime beleza plástica, inaudita, memorável. Apesar do horror que é assistir à morte de alguém daquela forma brutal (no filme, isso é traduzido pela emoção dilacerante que invade Riobaldo), é preciso admitir: a beleza não reside só no bonito e aprazível, havendo estesia também na dor, no sofrimento, na ferocidade.

       Visceralmente contra qualquer forma de violência, esta pesquisadora assume a dificuldade de assistir ao filme (e só fomos por tratar-se de filme nacional, de diretor por demais admirado e com atores cujas carreiras acompanho com muita atenção), e, sobretudo, foi por demais penoso visualizar a matança de Diadorim. Entretanto, a maioria das críticas dirigidas ao filme sequer faz menção a essa passagem cruel, emblemática, inesquecível. A morte de Diadorim tem ares de balé cênico, com imagens a se repetir, em câmara lenta, compondo uma sinfonia visual de extremo bom gosto e esteticamente lapidar. Entra para o livro de ouro das cenas mais solenes e plasticamente esplendorosa da cinematografia brasileira.  

        Outrossim, cabe ressaltar a caracterização assombrante e a atuação de Eduardo Sterblicht, ator vocacionado que consegue ser sempre prodigioso, seja na comédia, no drama, na farsa, na alegoria. Aplausos retumbantes. A merecer louvor também os atores Rodrigo Lombardi (o feroz Joca Ramiro, chefe de facção criminosa), Gustavo Falcão como subordinado que segue à risca as ordens de Zé Bebelo (Luís Miranda), o policial fascista que vira político, Ju Colombo, uma das moradoras do Complexo, e Izak Dahora como o bandido Nefasto. Quando a direção entende do que realiza , sabe onde quer chegar e caminha junto à produção, o resultado desvela-se nessa teia de trabalhos convincentes formando um todo harmônico.

    Na noite de lançamento no Rio, Guel e a filha Luisa, a Diadorim preferida…

A propósito, ouvi Guel Arraes contando do quanto foi difícil ver a filha Luísa sofrendo a morte do pai na pele de Diadorim. Ele diz ter chorado copiosamente ao término da filmagem, lembrando de seu pavor da morte, e do quanto ver a filha/personagem chorando e sofrendo foi infeliz. Do lado de cá, imagino o quanto o diretor também deve ter derramado lágrimas ao filmar essas sequências do assassínio de Diadorim, depois optar pelos quadros mais eloquentes, acompanhar a montagem e decidir quais ângulos de sequências comporia o produto final.

      Como no livro, a narrativa desenvolve-se a partir do relembrar de Riobaldo (Caio Blat), rememorando pedaços vividos no Grande Sertão: “Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo […] Se eu fosse filho de mais ação e menos ideia, isso sim, tinha escapulido, calado”. Sentado, de azul todo vestido, longos cabelos embranquecidos e barba enorme, o personagem guarda excelsa dialogia com Antônio Conselheiro, figura-símbolo da Guerra de Canudos, ocorrida no sertão baiano, de 1896 a 1897, e registrada na obra-prima de Euclides da Cunha, “Os Sertões” (1902).

O Riobaldo de Caio Blat, arauto da sabedoria de Guimarães Rosa, faz fina alusão ao mítico Conselheiro

Foi o beato quem disse, e não fora o registro de Euclides ninguém saberia: “O sertão vai virar praia e a praia vai virar sertão”. A emblemática frase aportou no cinema com “Deus e o diabo na terra do sol” (Glauber Rocha, 1964), e popularizou-se como “O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”.

         Conselheiro vestia sempre um longo hábito/túnica azul de brim, tinha longos cabelos e barbas, exatamente como está Riobaldo/Caio, envelhecido, narrando suas vivências no Complexo do Sertão. Essa similitude com o beato/profeta cearense está patente no filme “Guerra de Canudos” (1997), do cineasta carioca Sérgio Rezende, no qual José Wilker (conterrâneo nosso e de Conselheiro) está igualmente caracterizado. A simetria com Riobaldo é imediata e inescapável. Arrepiante!

       Esta subliminar intertextualidade (com Euclides e Glauber) no “Grande Sertão” de Guel Arraes/Jorge Furtado ratifica a essência da peleja sertaneja contada na obra Roseana e agiganta grandemente o filme ao assinalar, com galhardia, a ascendência da obra euclidiana na criação de Rosa. Afinal, o próprio escritor declarava que não existiria seu “Grande Sertão, Veredas” se não fora o livro monumental de Euclides da Cunha (1866-1909).

      Para além, isso ganha realce impressionador na interpretação visceral de Caio Blat – pontilhada de delicadeza, sensibilidade e destreza, ao dizer o texto de Rosa como se fossem palavras saídas de sua própria emoção. Imbuído de uma nova persona, de textura ainda mais rica, vemos um outro Riobaldo, profético como o beato dos Sertões de Euclides, a narrar causos vividos e prospectar presságios sobre o devir: “Tudo que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito”.

     Como quem extrai pérola do fundo do próprio sofrimento (revelando, de modo indubitável, sua total afinidade com o autor), Blat encharca de visceralidade sua narração e desvela traços de Riobaldo que o irmanam à figura real do Conselheiro –peregrino que ousou iniciar os movimentos de luta pela terra nos sertões nordestinos e liderou uma comunidade de invisibilizados e excluídos, massacrados covardemente pela nascente República. “O que aconteceu em Canudos foi um crime: denunciemo-lo”, afirma a pena euclidiana.

Guel Arraes não poderia ter intérprete mais roseano que Caio Blat, um confesso apaixonado pelo escritor de “Grande Sertão, Veredas”.

       O “Grande Sertão” de Guel Arraes/Jorge Furtado/Caio Blat/Luisa Arraes é, portanto, filme para ser visto, revisto e aplaudido. A todos os envolvidos, dos produtores Manoel Rangel e Heitor Dhália, aos lindos Vittória e Vitor que fazem Diadorim e Riobaldo crianças, o sonoro aplauso #auroradecinema e os Parabéns efusivos desta redatora. Afinal, “Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera”.


[1] O termo abrange movimento, ponto de vista, sequencialidade, montagem, podendo também ser acrescida a faculdade poética do cinema.

*Aurora Miranda Leão é jornalista, doutoranda em Comunicação e editora do blog Aurora de Cinema. Para saber mais, acesse https://linktr.ee/auroradecinema.

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